Entender a guerra que vem: terceira parte (3/5)





Terceira parte: os combatentes venezuelanos (desertores, civis e criminosos)
O storytelling ocidental deixa enxergar a situação na Venezuela como um conflito interno onde se opõem dois exércitos, duas legitimidades, dois presidentes. Por um lado, os «defensores da democracia», e por outro os defensores da «ditadura madurista», defendida por um exército em farrapos e por uma guarda pretoriana russo-cubana (1). Essa narração midiática permite silenciar a robustez das forças armadas bolivarianas e o apoio não negligenciável da população ao chavismo. Além disso, isso esconde completamente as questões geopolíticas e as ingerências predatórias dos Estados Unidos e dos seus cúmplices internacionais.
Desertores e civis

É nessa perspectiva que se deve apresentar um exército composto por venezuelanos. Não há nada novo abaixo do sol caribenho, onde antigos membros das forças de segurança pública e de defesa já se armaram contra a sua Pátria. Desde a chegada ao poder do Hugo Chávez, em 1999, a história da Revolução Bolivariana sempre foi marcada por deserções e conspirações militares. Do golpe de Estado de abril de 2002 ao golpe do 30 de abril de 2019, passando pelo golpe do ex-coronel Palomo (2019), ou ainda pelas conspirações dos generais Baduel (2007) ou Rodrigues Torres (2018), pela Operação Jericó (2015) ou pelos atos terroristas perpetrados por ex-militares (2003) e pelo comando do antigo polícial Oscar Perez (2017), sempre existiram militares e políciais prontos a lutar contra o poder legítimo da Venezuela (2).
Mesmo que seja evidente que os desertores, ainda que pouco numerosos, constituirão o núcleo visível dessa força militar, eles terão certamente, pela sua experiência de combate, a tarefa de enquadrar e de formar civis que se juntarão a eles, uma vez iniciada a engrenagem trágica da guerra.
Diferentemente da guerra da Síria e do seu Exército Sírio Livre, não existem na Venezuela conflitos inter-étnicos, inter-religiosos ou regionais significativos que possam servir de catalisadores na criação de um exército «rebelde». Em contrapartida, outras dimensões -políticas, identitárias, emocionais- não deixarão de ser aproveitadas para engrossar as tropas desse exército da sombra. A polarização política, a construção no tempo de uma verdadeira identidade chavista e do seu corolário contra-revolucionário, as diferentes visões do mundo que daí derivam, os sentimentos de ódio sabiamente alimentados por um aparelho midiático nas mãos dos grupos privados, a perda certa de uma qualidade de vida -adquirida durante os primeiros anos da Revolução bolivariana- perda devida ao bloqueio económico e às múltiplas sabotagens dos serviços públicos, deveriam certamente ter como consequência atrair numerosos civis venezuelanos do lado de uma aventura guerreira. Sem contar com aqueles que não têm possibilidade de escolha, quando a recusa de lutar numa zona controlada pela oposição poderia assemelhar-se a uma cumplicidade com o poder legítimo chavista.
Tivemos um exemplo desse tipo de mobilização durante as guarimbas, esses episódios de insurreição que a Venezuela presenciou em 2014 e 2017. Voltaremos mais adiante sobre esses acontecimentos, pois, à luz dos eventos recentes, a análise das guarimbas adquiriu uma nova dimensão.
Esses combatentes venezuelanos receberão sem dúvida o apoio de alguns dos seus compatriotas: os grupos criminosos que já lutam contra o Estado para o controle de corredores estratégicos.
Envolvimento de grupos de criminosos venezuelanos.    
Se o nome de El Picure, do Tren de Aragua, de El Coporo, El Topo ou ainda da Guardia Territorial Pemon não devem significar muito para nossos leitores, são no entanto alguns dos bandos criminosos que operam – ou operaram – no território da Venezuela. Esses grupos armados dedicam-se à venda de estupefacientes, à extorsão, a raptos, bem como a assassinatos por encomenda. Mas, sobretudo, elas efetuam um controle territorial rigoroso e fazem reinar o terror nas áreas que controlam.
Essas organizações criminosas estão instaladas principalmente nas regiões centrais da Venezuela (Aragua, Carabobo, Guárico), em alguns bairros populares das grandes cidades, e no rico Estado do Bolívar, que se encontra na fronteira com o Brasil.
Os Estados de Guárico, Aragua e Carabobo são as zonas territoriais onde transitam a maior parte das mercadorias produzidas na Venezuela e numerosos bens importados, seja da Colômbia ou seja por via marítima pelo porto de Puerto Cabello, localizado no estado de Carabobo.
Por outro lado, a presença desses grupos criminosos nesses Estados centrais lhes confere uma posição estratégica em relação aos corredores pelos quais se encaminha a droga proveniente da Colômbia e destinada a revenda na Venezuela. Através desse comércio ilegal, os grupos criminosos venezuelanos entram, aliás, em contato com os narco-paramilitares colombianos, que também são envolvidos nesse exército da sombra.
Acontece a mesma coisa no Estado do Bolívar, fronteiriço com o Brasil. O controle desse território é estratégico, devido à sua riqueza excepcional em minérios, mas também em produção de energia. Ali se encontram as segundas reservas de ouro do mundo, assim como o cinturão petrolífero rico em hidrocarboneto. Além disso, os subsolos estão cheios de bauxite, coltan, tório, ferro e outros minerais essenciais. O Estado de Bolívar detém também 82% das reservas de água doce superficial do país (3), graças principalmente ao rio Orenoque (o segundo mais importante da América Latina depois da Amazónia) e do seu afluente principal o rio Caroni. É sobre esse último que são construídas as três barragens que produzem 70% da electricidade da Venezuela (4). O Estado do Bolívar tem com que atrair o apetite dos predadores, tanto do poder imperial como da máfia local.
Vários grupos armados pretendem, aliás, arrogar-se o controle desse território e lutam já contra o Estado venezuelano, não disposto a permitir que esses grupos criminosos possam fazer tráfico de ouro e de outros minérios, extorsão ou raptos.
Por último, as organizações mafiosas das grandes cidades, que se dedicam principalmente à distribuição da droga, à prostituição, ao tráfico de armas, ao roubo de carros e outros delitos. Como os seus «colegas» dos campos, os bandidos das cidades estão fortemente instalados em certos bairros populares, transformando-os em zona do «seu direito». Quando a estrutura piramidal de um grupo criminoso é implantada num barrio (NDT: favela), o controle territorial é total e a polícia local empurrada para fora do território. Em Caracas, grupos criminosos ganharam assim o controle de certas zonas nos barrios de José Felix Ribas, da Cota 905, de Boquerón, de el Valle e de el Cementerio. Através das suas implantações nos bairros populares periféricos, os grupos criminosos exercem assim um controle sobre as vias de entrada e de saída das grandes cidades, bem como sobre certas zonas estratégicas no interior de metrópoles.
Esses grupos criminosos constituem um batalhão de reserva importante, que irá engrossar as fileiras deste exército da sombra que se prepara para invadir a Venezuela. Por um lado, já está em guerra com o Estado venezuelano. Esse não aceita, ao contrário do seu vizinho colombiano, a ceder partes do seu território. Por outro lado, as autoridades venezuelanas denunciaram repetidas vezes os laços que unem a oposição política a certos grupos criminosos.
Durante os episódios insurrecionais das guarimbas, em 2014 e 2017, as barricadas mais expostas eram constituídas por esses delinquentes, que não hesitavam em extorquir todos aqueles que querem atravessar as suas barricadas para ir trabalhar ou voltar para casa (5).
Os grupos criminosos são uns dos participantes da guerra que vem. A sua presença nas regiões centrais e na bacia mineira os torna aliados militares importantes para desvincular o Estado venezuelano da gestão das suas riquezas e impedir o abastecimento das grandes cidades. A presença de membros dessas organizações nos golpes mais violentos da oposição mostra que alguns já contam com a sua colaboração, as suas tropas e o seu arsenal para reforçar a luta militar contra o governo bolivariano.
Militares desertores, militantes da oposição, cidadão comum no meio do fogo cruzado, membros da máfia… Existe um grande viveiro de venezuelanos prontos a se opor militarmente ao poder legítimo de Nicolas Maduro. Eles constituem a força de ataque venezuelana das tropas da oposição, a parte que permitirá construir a imagem de um conflito interno que só uma ingerência estrangeira poderia travar. A essa fachada venezuelana não deixarão de se juntar numerosos elementos estrangeiros, dispostos a semear o caos no país bolivariano.
4a parte: Os elementos estrangeiros (mercenários, paramilitares e forças especiais)
Para as outras partes da análise “Venezuela: entender a guerra que vem”, clicar aqui.

Para as outras partes da análise “Venezuela: entender a guerra que vem”, clicar aqui.

Tradução: Ulysse Gallier
Notas:
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(1) Exatamente da mesma forma, no início da guerra na Síria, em 2011, os meios de comunicação internacionais explicaram que o Presidente Assad permanecia no poder apenas graças à sua guarda pretoriana alauita. Oito anos depois, medimos o ridículo da mentira. Mas essa volta intacta na Venezuela. Ver George Malbrunot, “60.000 centurions alaouites protègent le camp Assad”, Le Figaro, 01/08/2011. http://www.lefigaro.fr/international/2011/07/31/01003-20110731ARTFIG00201-60000-centurions-alaouites-protegent-le-clan-assad.php?redirect_premium
(2) Em 2015, um projeto de golpe de Estado é contrariado pelos serviços de inteligência. Um grupo de militares se preparava para bombardear vários locais estratégicos, entre os quais o Palácio Presidencial e a cadeia de televisão Telesur: é a operação Jericó. Em janeiro de 2018, o ex-policial Oscar Perez e seu comando foram mortos em um confronto com militares e policiais venezuelanos nas proximidades de Caracas. Durante o ano de 2017, esses homens bombardearam o Supremo Tribunal de Justiça e atacaram um posto militar em San Pedro de Los Altos para roubar armas. Mais recentemente, em janeiro de 2019, o ex-coronel Oswaldo Palomo foi capturado pelos serviços de inteligência de Caracas. Esse ex-militar tinha participado na tentativa de atentado contra o presidente Maduro e os responsáveis do governo em agosto de 2018, e estava preparando uma tentativa de golpe de estado, planejada para coincidir com a proclamação de Juan Guaido como presidente.
(3) Ernesto José González, María Leny Matos, Eduardo Buroz, José Ochoa-Iturbe, Antonio Machado-Allison, Róger Martínez y Ramón Montero, “Agua urbana en Venezuela”, in  Desafíos del agua urbana en las Américas, Paris: ed. Unesco, page 578. Disponível em https://ianas.org/docs/books/Desafios_Agua.html.
(4) Se trata das barragens do Guri, de Caruachi e de Macagua, onde operam as três principais plantas hidroeléctricas do país. São plantas que forma hackeadas durante a sabotagem do 7 de março de 2019.
(5) Ver Romain Migus, “2016 et 2017, le calme après la tempête (chronique d’en bas nº2), Venezuela en Vivo, 21/07/2018, https://www.romainmigus.info/2018/07/2016-et-2017-le-calme-apres-la-tempete.html